10 de junho de 2021 blog

CIRCE – Deusa menor. Filha de Hélio, o Sol (um titã), e filha de Perséis (uma náiade). – Conhecida por ser sacerdotiza/filha de Hekate.

Nessa história a autora Madeline Miller faz uma releitura de uma visão mais desenvolvida sobre Circe – personagem secundária dentro da Odisseia. Ela escreve uma trajetória profunda sobre sua vida, suas ações e sobre quem realmente ela é. Trazendo um aspecto bem empoderador e de autoconhecimento.

Circe nasce dentro dos salões dos deuses, porém como é uma deusa menor, ela não está junto com os olimpianos mas sim com os titãs e outros seres místicos. Circe sempre teve uma relação ambivalente com os deuses e ninfas: ao mesmo tempo que se sentia diferente deles e não os entendia, fazendo com que se isolasse, buscava constantemente pela aprovação deles. Porém nenhum deles, sequer, a suportava. Nem seus pais. Aparentemente ela não tinha nenhum tipo de poder ou benção divina, até sua voz era humana e, por isso, ela nunca foi vista por mais do que um fardo. Circe se identificava mais com os seres humanos do que com seus semelhantes, sendo assim muito solitária.

Um dia Circe conhece o Prometeu, uma figura que a instiga muito por agir diferente dos outros deuses que conhece. Esse encontro a fez acender uma luz em sua alma, percebendo que ele se importa com o cuidado dos seres humanos e se rebela contra os deuses.

Passando por muitas decepções entre sua família e seus amores, Circe, após usar uma planta mágica (a qual se chama Moli – fruto do sangue derramado pelos titãs) para transformar seu amado mortal em imortal, descobre que existe magia dentro de si, pois apenas feiticeiros conseguem os efeitos dessa planta. Descobrindo-se, assim, uma bruxa.

Após esse despertar e, após ela ter feito algo horrível por ciúmes, ela é punida pelos deuses que demonstram um certo temor para com poderes mágicos. Sua punição foi ficar isolada em uma ilha que se chamava Eana. Ela não podia sair da ilha, mas pessoas poderiam ir até ela.

Nessa ilha se intensifica seu processo de autoconhecimento. Autoconhecimento em saber quem ela é, em se descobrir na bruxaria e em suas posições sobre o mundo – até em suas antigas relações dentro da família. Circe acaba se aprofundando na natureza, nas ervas, nos processos de secagem de plantas, nos seus erros e nos seus acertos… enfim, florescendo no estudo e no contato com esse mundo mortal, com suas experiências dentro da magia. Encontrando nesse isolamento sua liberdade.

Quando ela está na ilha aparecem diversos visitantes, tripulações de homens que param em busca de ajuda. Circe sempre feliz em ajudar, se decepcionava quando esses homens tentavam colocar suas forças para cima dela, tentando a dominar/estuprar/ridicularizar. Com isso ela aprendeu a se defender com feitiços, transformando esses homens em porcos como castigo e proteção.

Como esse livro foi feito com recortes da Odisseia, para que a linha fique fiel aos mitos, a história conta com muitos contatos de outros deuses e personagens. Hermes que sempre vai visitar Circe para levar notícias sobre o mundo afora; o monstro Cila que Circe se arrepende em ter criado; Atena; Hélio; Odisseu; Penélope; Telêmaco; ninfas e afins… 

O conto é um processo de desenvolvimento muito profundo e doloroso, foram séculos de passagem entre alguns acontecimentos e outros, séculos para conseguir se impor e se entender para, assim, sair do papel do “patinho feio”. Em meio a essas reflexões a autora mostra que Circe acaba se assemelhando, não só aos outros deuses, mas também aos homens. Não sendo uma figura frágil, fraca e vulnerável como sempre foi vista – até por ela mesma. A personagem consegue perceber o quão ingênua e julgadora foi em alguns posicionamentos e crenças. Avaliou sua repulsa à sua irmã e às ninfas, as quais sempre foram retratadas como belas e sedutoras, mas aqui Madeline levanta a questão de que isso as tornava alvos de assédio constante entre deuses e mortais, devido ao pouco poder que realmente tinham. Aos poucos, Circe vai percebendo que existe um jogo de poder e artimanhas desenvolvidas pelas ninfas e pelas deusas da corte por uma questão de sobrevivência em meio ao patriarcado e opressão parental.

É importante apontar nessa história como se deu seu desenvolvimento em relação aos homens. No começo do livro ela sempre quis aprovação do pai, se sentir acolhida pelo irmão, ser amada pelo seu amado… mas ao longo de seu aprendizado vai encontrando seus meios de se encontrar por conta própria, sem essas referências masculinas como base que sempre procurou.

É interessante ver que esse entrelace de seu empoderamento feminino e liberdade se remetem ao símbolo de Bruxa. Sendo bruxa e tendo essa liberdade nas ações, liberdade em sabedoria e liberdade em poder. Onde passa por processos de autoconhecimento e de amadurecimento, consegue usufruir de sua criatividade e dar um livre rumo à sua vida e à suas próprias ideologias. Em qualquer que seja seu ofício ou desejo, escolhendo o seu próprio caminho.

Gostei muito desse aspecto bem feminista dentro da mitologia grega, pois é algo incomum. Dentro da Odisseia e dos mitos, o papel da mulher sempre é mais secundário e mais raso. Sempre agindo por trás de um homem. Circe aparece como uma deusa que é capaz de coisas mágicas e incríveis, porém sempre secundária ou vista como monstruosa e sádica por suas ações. Madeline conseguiu trazer muitas reflexões, visões diferentes e humanização a ela. Em muitos momentos é impossível não se assemelhar com ela e ter empatia por suas ações e escolhas.

Acredito que a leitura seja para todos. É uma história que flui com naturalidade e possui uma linguagem fácil, apesar de alguns momentos o desenrolar ser mais arrastado e demorado. A autora consegue nos levar com detalhes para a escuridão do castigo de Prometeu, para a iluminada ilha de Eana. Conseguimos nos localizar e visualizar todo o cenário com suas descrições incríveis.

Trechos retirados do livro:

“Humilhar as mulheres parece ser um dos passatempos preferidos dos poetas, como se não pudesse haver uma história se não rastejarmos ou choramingarmos”.  

“Bruxas são mulheres cujos poderes os homens não conseguem controlar”.

Sinopse

Na casa do grande Hélio, divindade do Sol e o mais poderoso da raça dos titãs, nasce uma menina. Circe é uma garotinha estranha: não parece ter herdado uma fração sequer do enorme poder de seu pai, muito menos da beleza estonteante de sua mãe, a ninfa Perseis. Deslocada entre deuses e seus pares, os titãs, Circe procura companhia no mundo dos homens, onde enfim descobre possuir o poder da feitiçaria, sendo capaz de transformar seus rivais em monstros e de aterrorizar os próprios deuses.
Sentindo-se ameaçado, Zeus decide bani-la a uma ilha deserta, onde Circe aprimora suas habilidades de bruxa, domando perigosas feras e cruzando caminho com as mais famosas figuras de toda a mitologia grega: o engenhoso Dédalo e Ícaro, seu filho imprudente, a sanguinária Medeia, o terrível Minotauro e, é claro, Odisseu.
E os perigos são muitos para uma mulher condenada a viver sozinha em uma ilha isolada. Para proteger o que mais ama, Circe deverá usar toda a sua força e decidir, de uma vez por todas, se pertence ao reino dos deuses ou ao dos mortais que ela aprendeu a amar.

Circe oferecendo a taça para Odisseu. Obra de John Waterhouse, 1891.

Circe, 1911 por Beatrice Offor.